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Arqueologia no Vale do Rio Jauru revela coexistência sucessiva de duas tradições cerâmicas e dois sistemas de assentamento pré-coloniais

  • Foto do escritor: Oeste MT Urgente
    Oeste MT Urgente
  • 13 de nov.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 17 de nov.

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As pesquisas arqueológicas realizadas no médio curso do rio Jauru, em Indiavaí (MT), no contexto do licenciamento da PCH Figueirópolis, revelaram um dos cenários mais complexos de ocupação pré-colonial do oeste brasileiro. A área estudada, situada na interface entre Cerrado, Pantanal e Amazônia, confirmou-se como uma zona de fronteira cultural milenar, reunindo características ambientais propícias à instalação de grupos horticultores de diferentes tradições.


No total, foram identificados 34 sítios arqueológicos, dos quais 25 receberam intervenções mais profundas, incluindo escavações e abertura de 226 poços-teste. A análise do material cerâmico — mais de 11 mil fragmentos — aliada aos dados geomorfológicos, históricos e ambientais, confirmou a presença de dois sistemas distintos de assentamento, associados a dois tipos de cerâmica:

 (1) cerâmica com antiplástico areia e

 (2) cerâmica com antiplástico cariapé.


Esses sistemas refletem maneiras diferentes de produzir, ocupar, circular e se adaptar ao ambiente do Jauru.


A paisagem: mosaico entre três biomas


A região pesquisada apresenta um mosaico ambiental formado por:

  • floresta aluvial nas planícies sazonalmente inundadas;

  • cerradão em terraços fluviais;

  • cerrado aberto e transições em meia encosta.

O rio Jauru mantém corredeiras, curvas e ilhas que concentram peixes migratórios e residentes, além de flora variada com frutos, raízes, madeiras e solos férteis que favorecem grupos cultivadores. Isso explica a presença de numerosos sítios arqueológicos distribuídos ao longo de apenas 16 km de margem.


Dois tipos de pasta e processos distintos de produção


A análise da cerâmica revelou diferenças marcantes:

1. Antiplástico areia (mais comum)


  • pasta argilosa avermelhada;

  • queima irregular em atmosfera oxidante;

  • núcleo escurecido;

  • dureza Mohs 4;

  • maior diversidade de formas;

  • peças frequentemente decoradas.


2. Antiplástico cariapé (menos frequente)


  • pasta argilo-arenosa acinzentada;

  • melhor amassamento (sova) e mistura;

  • núcleo igualmente escurecido;

  • dureza Mohs 3;

  • formas mais abertas e planas;

  • quase nenhuma decoração.


Cores, queima e acabamento


A cor predominante das paredes cerâmicas é ocre-pardacento avermelhado (67%). Seguem-se:

  • pardacento-amarelado – 13%;

  • marrom – 13%;

  • sépia – 7%.

Há presença frequente de manchas de fumaça, indicando que a queima não isolava totalmente as peças das chamas.

Em termos de acabamento:

  • 81% (9.699 fragmentos) são alisados simples, sem decoração.

  • 703 fragmentos pintados:

    • 390 pintados de vermelho na face externa;

    • 291 pintados de preto na face interna;

    • 22 pintados em preto e vermelho, em ambas as faces.

  • 623 apresentam decoração incisa zonal.

  • 31 fragmentos possuem decoração plástica (beliscada, zigue-zague, inciso geométrico triangular).

  • Em 11 fragmentos, a pintura vermelha aparece associada aos motivos triangulares incisos.

As decorações concentram-se nas cerâmicas com antiplástico areia, especialmente nos sítios grandes. As cerâmicas com cariapé são quase sempre sem decoração.


Variedade formal das vasilhas


Independentemente do antiplástico, foram encontradas inúmeras formas:

  • globulares, esféricas, semi-esféricas, tronco-cônicas, meia-calota e platiformes;

  • bordas cilíndricas, restritas, hiperbólicas, extrovertidas, introvertidas, inflectidas, reforçadas interna e externamente;

  • bases arredondadas, cônicas, aplanadas e planas em pedestal.

Depois de separadas por tipo de antiplástico, surgiram padrões nítidos.


SISTEMA 1 — Cerâmica com areia: formas fechadas, globulares e decoradas


Nos sítios com cerâmica de antiplástico areia, predominam:

  • vasilhas globulares e semi-esféricas;

  • formas em meia-calota com bordas extrovertidas e expandidas;

  • tigelas com borda reforçada;

  • bases cônicas e arredondadas;

  • estreitamento de gargalo com reforço externo.

As formas fechadas parecem associadas a funções de armazenamento e cozimento, típicas de horticultores que ocupavam o Jauru de maneira mais antiga.

Também aparecem fichas polidas, pesos de fuso, adornos e grande variedade de fragmentos decorados.


SISTEMA 2 — Cerâmica com cariapé: formas abertas e utilitárias


Nos sítios com antiplástico cariapé, predominam:

  • formas abertas e rasas;

  • pratos assadores, gamelas, tigelas rasas;

  • bases planas ou levemente aplanadas;

  • vasilhas platiformes;

  • quase ausência de decoração.

Esse conjunto é associado a grupos cultivadores do Cerrado, com padrão de aldeamento distinto, provavelmente posterior ao sistema da cerâmica com areia.


Conjunto lítico: discreto, mas revelador


O material lítico é reduzido, mas significativo:

  • 2 lâminas de machado polidas com entalhe para preensão;

  • 1 lâmina fragmentada;

  • 11 lascas;

  • 1 instrumento plano-convexo.

As matérias-primas usadas foram diorito cinza (machados) e quartzito branco (lascas e instrumentos).


Diálogo com a bibliografia e identificação cultural


Ao comparar os dois sistemas com tradições reconhecidas por diversos pesquisadores, surgiram associações claras:


SISTEMA 1 — Cerâmica temperada com areia


Relaciona-se à Tradição Descalvado/Pantanal, descrita por Migliácio (2006) e atribuída a grupos Arawak como:

  • Mojo

  • Bauré

  • Manasi

  • Guató

  • Paiaguá

Também apresenta semelhanças com as fases:

  • Jacadigo

  • Castelo

  • Taiamã

do Pantanal.


SISTEMA 2 — Cerâmica com cariapé


Aproxima-se da Tradição Uru, ligada a povos Macro-Jê, como:

  • Bororo

  • Nhanbikuara

  • Ararivá

  • Saraveka

Essa tradição é típica dos grupos cultivadores do Cerrado, especialmente Tocantins/Araguaia e bacia do Jauru.


Uma fronteira cultural dinâmica e sucessiva, não simultânea


Como os sítios dos dois sistemas aparecem misturados no espaço, mas exibem tradições claramente distintas, os pesquisadores concluíram que:

  • não são contemporâneos, e

  • representam ocupações sucessivas.

Assim, a cerâmica com areia seria a mais antiga; a cerâmica com cariapé representaria grupos posteriores.

Dillehay (2000), Ellen (1982), Steward (1963) e Suznik (1978) já mencionavam que vales férteis como o Jauru tendem a registrar intensa diversidade cultural ao longo do tempo, o que se confirma aqui.


Conclusão


O conjunto de dados demonstra que o Vale do Rio Jauru foi palco de pelo menos duas tradições cerâmicas, duas identidades culturais e dois modos de viver distintos, que se sucederam ao longo do tempo:

  • um sistema ligado à planície aluvial, com cerâmica globular, fechada e decorada (Tradição Descalvado/Pantanal — Arawak);

  • outro associado às áreas de cerrado, com cerâmica aberta, utilitária e sem decoração (Tradição Uru — Macro-Jê).

A convivência territorial, embora não simultânea, revela que o vale funcionou como corredor cultural entre o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia, sendo um dos mais expressivos registros arqueológicos de fronteira cultural no Centro-Oeste brasileiro.


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