História Jauru: Da Gleba Paulista ao Município, Entre Conflitos, Fé e o Legado de Padre Nazareno Lanciotti
- Oeste MT Urgente
- 10 de nov.
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A história de Jauru, localizada a cerca de 450 quilômetros de Cuiabá, é marcada por ciclos de colonização, disputas de terra, resistência, fé e personagens que moldaram a identidade do município. Entre esses personagens, poucos são tão influentes quanto Padre Nazareno Lanciotti, figura central em momentos decisivos da trajetória local.
A Origem: A Gleba Paulista e a Colonização
Tudo começou no início da década de 1950, quando a Companhia Comercial de Terras Sul Brasil, sediada em Marília (SP), adquiriu uma área de aproximadamente 250 mil alqueires com o objetivo de promover colonização no então município de Cáceres, entre os rios Jauru e Guaporé.
A região, rica em terras férteis mas isolada, começou a receber migrantes principalmente do Sudeste — paulistas, paranaenses e mineiros — que buscavam novas oportunidades. Esse grande empreendimento ficou conhecido como Gleba Paulista.
Famílias inteiras se deslocaram para o “sertão mato-grossense” com a promessa de terras produtivas, abrindo picadas, construindo casebres de madeira e iniciando a agricultura em um lugar onde a infraestrutura praticamente inexistia.
Com o avanço da ocupação rural, surgiram vilas que mais tarde se tornariam distritos e, posteriormente, municípios. Entre elas, cresceu o núcleo que viria a ser Jauru.
A Formação da Vila e o Caminho para Município
Durante as décadas de 1960 e 1970, a região recebeu incentivo governamental para povoamento, impulsionada pela política de interiorização. Estradas foram abertas, serrarias se instalaram e grandes áreas passaram a ser ocupadas por agricultores familiares.
Jauru se consolidou como ponto de apoio para viajantes e trabalhadores da terra. O movimento aumentou com a abertura de comércios, escolas, igrejas e pequenas agropeças. O espaço urbano começou a se desenhar, inicialmente com poucas ruas, casas de madeira e um comércio essencial.
A crescente atividade econômica, baseada na pecuária e plantações, favoreceu o desenvolvimento da vila, que ganhou força política suficiente para pleitear autonomia. Anos mais tarde, Jauru finalmente se emanciparia, consolidando-se como município mato-grossense.
A Decisão Histórica de 1983: Conflito Agrário e Sangue na Terra
Mas antes da consolidação administrativa, a região enfrentou um dos episódios mais dramáticos de sua história.
Em 1983, conflitos agrários explodiram na área da Agropecuária Mirassol, envolvendo 29,8 mil hectares, sendo 22,8 mil hectares de terras devolutas. Uma massa de famílias sem-terra, pressionadas pela miséria e desesperadas por sobrevivência, ocuparam 7 mil hectares da fazenda.
O número de posseiros cresceu rapidamente. Em pouco tempo, eram mais de 1,1 mil pessoas acampadas, que chegaram a fechar a entrada de Jauru e a bloquear acessos.
A tensão chamou atenção do governo estadual. O então governador Julio Campos enviou um ônibus cheio de policiais militares para controlar a situação. O proprietário da fazenda reagiu contratando jagunços armados. O cenário tornou-se explosivo.
O Tiroteio e a Entrada de um Homem que Mudaria a História
No auge do confronto, com disparos cruzando a entrada da cidade, surgiu uma figura inesperada: Padre Nazareno Lanciotti, missionário italiano recém-chegado de uma celebração na zona rural.
Ele desceu de seu carro às pressas, deixou a porta aberta e ajoelhou-se no meio do tiroteio, com os braços erguidos, pedindo paz. O gesto chocou posseiros, jagunços e policiais. Um sem-terra correu até ele, tentando tirá-lo da linha dos tiros. Ainda assim, o padre continuou rezando na calçada de uma casa enquanto autoridades conseguiam negociar o cessar-fogo.
O saldo foi trágico:
✅ quatro posseiros mortos
✅ dois policiais feridos
Apesar da dor, parte da população jauruense acolheu os posseiros expulsos, garantindo-lhes abrigo e comida.
Anos mais tarde, aquela ocupação originaria a comunidade Mirassolzinho, que se tornaria fundamental na economia do município. A regularização fundiária desta área só ocorreu graças ao esforço incansável do Padre Nazareno.
A Chegada de Padre Nazareno: O Missionário que Moldou Jauru
Nascido na Itália, Nazareno Lanciotti chegou ao Mato Grosso na década de 1970 como parte da Operação Mato Grosso, um movimento católico de evangelização e ação social. Trabalhou em Cáceres e, posteriormente, foi enviado para Jauru, onde deixaria marcas profundas.
De personalidade forte e carisma incomum, Nazareno transformou-se em líder religioso regional. Ele fundou o Asilo Coração Imaculado de Maria, que abriga cerca de 40 idosos, e construiu 42 capelas na zona rural, além de duas na área urbana.
Seu poder de articulação era tão grande que Jauru virou polo regional do Movimento Sacerdotal Mariano (MSM).Cuiabá passou a ser a cidade com maior número de cenáculos marianos do mundo, e milhares de fiéis viajavam a Jauru para retiros espirituais.
O Crime que Chocou o Estado: 11 de Fevereiro de 2001
No dia 11 de fevereiro de 2001, Nazareno celebrou sua última missa. O evangelho que pregou falava sobre renunciar tudo para seguir Jesus. Repetiu várias vezes:“Pobre do homem que confia em outro homem.”
Após a celebração, convidou voluntários para jantar na casa das irmãs, atrás da Matriz. Durante a conversa, dois homens encapuzados invadiram o local, armados e inicialmente educados. Exigiram a senha de um cofre que o padre dizia estar trancado há anos. Ele ofereceu dinheiro, cheque e até o carro — nada os convencia.
Os criminosos iniciaram uma terrível roleta russa, passando o revólver na nuca de alguns presentes.
Quando se aproximaram do padre, ele se ofereceu como alvo, pedindo que ninguém mais fosse ferido.
Poucos segundos depois, um dos homens colocou o cano na nuca de Nazareno e disparou.
Ferido, o padre ainda conseguiu sussurrar que sentia dor quando chegou ao hospital, mas não resistiu.Jauru entrou em comoção. Moradores correram ao hospital, chamados pelo sino da Matriz tocado desesperadamente por Jorge Moreira.
A avenida pela qual os criminosos fugiram mais tarde receberia o nome Avenida Padre Nazareno, homenagem a quem deu a vida pela comunidade.
O Legado de Fogo e Fé
A história de Jauru — desde a Gleba Paulista, passando pela colonização, conflito agrário, formação municipal e desenvolvimento comunitário — está profundamente entrelaçada à vida do padre italiano que adotou o município como lar.
Padre Nazareno foi pacificador no conflito de 1983, fundador de instituições sociais, construtor de grande parte da identidade religiosa local e mártir de um crime cruel.
Sua influência atravessa décadas e permanece viva na memória popular, nas construções que ergueu e no espírito de resistência e fé que ajudou a plantar.
Jauru, hoje, é fruto de sua terra fértil, de seus conflitos, de seus pioneiros e, acima de tudo, da coragem de homens como Nazareno Lanciotti, que arriscaram — e perderam — suas vidas para defender aqueles que mais precisavam.



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